AMOR POESIA SABEDORIA
Ensaio de Edgar Morin
MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Trad. Edgar de Assis Carvalho. 4ª. edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 68 p.
ISBN 85-286-0654-6
Exemplar coleção Antonio Miranda doado para a Biblioteca Nacional de Brasília.
Prefácio
A idéia de se poder definir
o gênero homo atribuindo-lhe a qualidade de sapiens,
ou seja, de um ser racional e sábio, é sem dúvida uma
idéia pouco racional e sábia. Ser Homo implica ser
ser igualmente demens. em manifestar uma afetividade
extrema, convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mu-
danças brutais de humor; em carregar consigo uma fon-
te permanente de delírio; em crer na virtude de sacrifí-
cios sanguinolentos, e dar corpo, existência e poder a
mitos e deuses de sua imaginação. Há no ser humano
um foco permanente de Ubris, a desmesura dos gregos.
A loucura humana é fonte de ódio, crueldade, bar-
bárie, cegueira. Mas sem as desordens da afetividade e
as irrupções do imaginário, e sem a loucura do impos-
sível, não haveria élan, criação, invenção, amor, poesia.
O ser humano é um animal insuficiente, não apenas na
razão, mas é também dotado de desrazão.
Temos, entretanto, necessidade de controlar o
homo demens para exercer um pensamento racional,
argumentado, crítico, complexo. Temos necessidade de
inibir em nós o que o demens tem de homicida, malva-
do, imbecil. Temos necessidade de sabedoria, o que
nos requer prudência, temperança, comedimento, des-
prendimento.
Prudência, sim, mas isso não significa esterilizar
nossas vidas, evitar riscos a qualquer custo? Temperan-
ça, sim, mas será mesmo necessário evitar a experiên-
cia da "consumação" e do êxtase? Desprendimento,
sim, mas será mesmo necessário renunciar aos laços de
amizade e amor?
O mundo em que vivemos talvez seja um mundo
de aparências, a espuma de uma realidade mais profun-
da que escapa ao tempo, ao espaço, a nossos sentidos e
a nosso entendimento. Mas nosso mundo da separação,
da dispersão, da finítude significa também o mundo da
atração, do reencontro, da exaltação. E estamos plena-
mente imersos neste mundo que é o de nossos sofrimen-
tos, felicidades e amores. Não experimentá-lo é evitar o
sofrimento, mas também não haverá o gozo. Quanto
mais estamos aptos à felicidade, mais nos aproximamos
da infelicidade. O Tao-te-ching1diz muito apropriada-
-----------------
1 Tao-te-ching: livro do caminho, coleção de 81 poemas escritos
por Lao Tsé, que constituem os fundamentos do taoísmo. (N. T.)
mente : "A infelicidade caminha lado a lado com a felici-
dade; a felicidade dorme ao pé da infelicidade."
Estamos condenados ao paradoxo de manter em
nós, simultaneamente, a consciência da vacuidade do
mundo e da plenitude que nos propicia a vida quando
pode ou quando quer. Se a sabedoria nos incita ao de-
sapego do mundo da vida, será que ela está sendo ver-
dadeiramente sábia? Se aspiramos à plenitude do amor,
isso significa que somos verdadeiramente loucos?
Nos textos que se seguem, reconhecemos o amor
como o ápice mais perfeito da loucura e da sabedoria,
ou seja, que no amor, sabedoria e loucura não apenas
são inseparãveis, mas se interpenetram mutuamente.
Reconhecemos a poesia não apenas como um modo de
expressão literária, mas como um estado segundo do
ser que advém da participação, do fervor, da admira-
ção, da comunhão, da embriaguez, da exaltação e, ob-
viamente, do amor, que contém em si todas as expres-
sões desse estado segundo. A poesia é liberada do mito
e da razão, mas contém em si sua união. O estado poé-
tico nos transporta através da loucura e da sabedoria,
e para além delas.
O amor faz parte da poesia da vida. A poesia faz
parte do amor da vida. Amor e poesia engendram-se
mutuamente e podem identificar-se um com o outro.
Se o amor expressa o ápice supremo da sabedoria
e da loucura, é preciso assumir o amor.
Se a poesia transcende sabedoria e loucura, é ne-
cessário aspirarmos a viver o estado poético e assim
evitar que o estado prosaico engula nossas vidas, ne-
cessariamente tecidas de prosa e poesia.
A sabedoria pode problematizar o amor e a poe-
sia, mas o amor e a poesia podem reciprocamente pro-
blematizar a sabedoria. O itinerário aqui proposto que
conteria amor, poesia, sabedoria, comportaria, em si
mesmo, esta mútua problematização.
Devemos fazer tudo para desenvolver nossa racio-
nalidade, mas é em seu próprio desenvolvimento que a
racionalidade reconhece os limites da razão, e efetua o
diálogo com o írracíonalízavel.
O excesso de sabedoria pode transformar-se em
loucura, mas a sabedoria só a impede, misturando-se à
loucura da poesia e do amor.
Nosso cotidiano vive sempre em busca do sentido.
Mas o sentido não é originário, não provém da exterio-
ridade de nossos seres. Emerge da participação, da fra-
ternização, do amor. O sentido do amor e da poesia é
o sentido da qualidade suprema da vida. Amor e poe-
sia, quando concebidos como fins e meios do viver,
dão plenitude de sentido ao "viver por viver".
A partir daí, podemos assumir, mas com plena
consciência, o destino antropológico do homo sapiens-
demens, que implica nunca cessar de fazer dialogar
em nós mesmos sabedoria e loucura, ousadia e pru-
dência, economia e gasto, temperança e "consumação",
desprendimento e apego.
Tudo isso implica endossar a tensão dialogal, que
mantém permanentemente a complementaridade e o
antagonismo entre amor-poesia e sabedoria-racionali-
dade.
E.M.
*
VEJA e LEIA outros ensaios sobre Poesia em nosso Portal:
http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/ensaios_index.html
Página publicada em agosto de 2022
|